Déficit de atenção
(escrito por: Dora Kramer)
A confusão quase-crise entre os ministérios da Justiça e Defesa -leia-
se Forças Armadas-, que fechou 2009 e reabriu a recorrente questão
sobre a punição aos crimes contra a vida cometidos durante a ditadura,
exibiu a face contraproducente do modo espetáculo de Luiz Inácio da
Silva governar o Brasil.
Isso partindo da premissa de que o presidente da República falou a
verdade quando disse que assinou decreto de criação do Programa
Nacional de Direitos Humanos sem conhecer seu conteúdo. Grave em si, o
fato não é incomum.
O antecessor de Lula mesmo, Fernando Henrique Cardoso, bem mais afeito
à leitura e interesse por detalhes, assinou sem ler um decreto que
poderia manter documentos oficiais sob sigilo eterno. O ex-presidente
justificou que assinou "como rotina" e atribuiu a falha a um descuido
burocrático ou a má-fé de "alguém" a quem não denominou. Ou não
identificou.
Quem conhece a sistemática do Palácio sabe como as coisas funcionam:
"No fim do expediente entra no gabinete presidencial um chefe da Casa
Civil com a papelada para o presidente assinar antes de enviar os atos
à publicação no Diário Oficial. Em geral, enquanto conversam o
presidente assina os documentos não necessariamente mediante exame",
descreve o deputado Raul Jungmann, presidente da Frente Parlamentar de
Defesa Nacional e ministro da Reforma Agrária no governo FH.
Daí não ser de todo inverossímil, desta vez, a versão de que Lula não
sabia que o decreto tratava entre outras coisas da possibilidade da
revisão da Lei da Anistia e de tolices revanchistas como a retirada
dos nomes de presidentes do regime militar de pontes, rodovias,
praças, ruas e prédios públicos.
Um contrassenso até em face das repetidas referências elogiosas que o
presidente faz às realizações e até ao modelo administrativo desses
governos.
Mais difícil de acreditar é que o presidente Lula ignorasse os termos
do acordo que, segundo o ministro da Defesa, Nelson Jobim, foi dura e
intensamente negociado entre a sua pasta, os comandantes das três
Forças, os primeiros escalões do Exército, Marinha e Aeronáutica, e o
Ministério da Justiça, na figura do secretário nacional de Direitos
Humanos, Paulo Vannuchi.
Se de fato ignorava, de duas uma: ou o presidente foi induzido ao erro
pela ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, ou errou em decorrência
de seu déficit de atenção em relação aos assuntos de governo que não
se relacionem diretamente com embates de natureza político-eleitoral
ou com o culto à sua personalidade.
Não é crível que um assunto que no ano passado havia feito explodir
divergências públicas, entre os mesmos personagens e arquivado por
ordem de Lula, não estivesse sendo acompanhado pelo presidente.
Em qualquer das duas hipóteses houve quebra de confiança. Ou da
ministra para com o presidente ou de Lula em relação às Forças
Armadas, uma instituição pautada pelo princípio da disciplina e da
hierarquia.
Pelo acerto, a Comissão da Verdade, na expressão do deputado Jungmann,
uma espécie de "CPI da ditadura", investigaria os crimes cometidos
durante o período autoritário levando em conta não apenas as ações dos
militares, mas também os atos dos integrantes da resistência pela vida
da luta armada.
O texto apresentado e assinado pelo presidente Lula, no entanto, só
fazia referência a investigações aos crimes cometidos pelo "aparelho
de Estado", vale dizer, os militares e os civis que serviram como
braços auxiliares.
Se a ideia foi criar uma dificuldade para dirimi-las no decorrer de
uma negociação posterior, quando o projeto de lei chegasse ao
Congresso, por exemplo, foi uma péssima ideia.
Não pela essência, dado que o direito de um país à sua memória é
sagrado e que, mais dia menos dia, o Brasil terá de enfrentar a
questão. A tortura e o terror universalmente não se submetem a
legislações específicas, são atos condenados em tratados
internacionais dos quais o Brasil é signatário.
O problema foi a forma. Se já é difícil fazer com que os militares
concordem em criar uma instância para o reexame de crimes que podem
"tragar" a instituição para um passado com o qual a maioria não guarda
a menor relação, impossível é fazê-los aceitar a quebra da palavra
empenhada.
Se as coisas se passaram realmente conforme o relato que fez o
ministro da Defesa e os comandantes das três Forças protestarem por
meio dos pedidos de demissão, houve quebra grave de confiança e não é
assim que se conduzem negociações nesse meio. Não foi assim que se
conduziu a campanha que resultou na anistia e abriu caminho para a
redemocratização.
Se com o Congresso e com a opinião pública a força da popularidade
presidencial se sobrepõe ao valor da palavra dita e a reticência é
admitida, com as Forças Armadas o "sim" e o "não" são limites
intransponíveis de uma linha a ser defendida a qualquer custo.
Não por veleidades antidemocráticas, mas pelo temor da desmoralização
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