Sniper
Como todas as melhores forças de combate do mundo, o BOPE tem seu sniper, aquele sujeito que é capaz de aparar o bigode de um gato com um tiro, a meio quilômetro de distância, mesmo no tumulto de um seqüestro. Nosso sniper era o Duque, sargento Alceu Duque dos Santos. Naquele fim de tarde, ele subiu a favela de Nazareth conosco, determinado a estrear seu novo fuzil Remington 7.62, de alta precisão, com cano flutuante e luneta Leopold. Alcançamos o platô lateral superior do morro, de onde tínhamos uma visão ampla da movimentação na favela. A incursão era preventiva.
Tínhamos notícia de que os vagabundos que comandavam o tráfico local pretendiam pôr o bonde na rua e barbarizar o bairro. Com BOPE fungando no cangote, a molecada não seria doida de brincar com fogo. Levamos visores noturnos e nos preparamos para passar a noite por ali mesmo.
Enquanto nos acomodávamos, ocupávamos os pontos estratégicos e planejávamos uma ação saneadora, para nos livrarmos de uma vez dos vagabundos daquela comunidade, o Duque se divertia com seu potente Remington 7.62, lustrado, elegante, girando pra lá e pra cá no bipé que o sustentava. Parecia um menino feliz mijando em direção às estrelas numa noite de verão, depois da primeira transa com a menina mais cobiçada da turma. Lá ia ele, virando para todos os lados a incrível luneta Leopold, acoplada à arma, fazendo pose de herói nacional.
— Duque — eu disse —, acho que você andou assistindo muito filme de guerra, ultimamente. Está querendo brincar de bandido mocinho? Só falta fazer a trilha sonora, imitando o som dos projéteis que cortam o céu. O que é que você tanto olha? A favela está tranqüila, não tem ninguém fora de casa. A malandragem já sabe que a gente está aqui. Pode relaxar.
— Eu sei, capitão, eu sei. É que daqui, com a luneta, também: dá pra ver perfeitamente a favela do Bugre.
Tudo bem. Eu tinha mais com que me preocupar. Chamei o Torres e o Vargas para definir alguns detalhes do plano de ação e me esqueci do nosso sniper.
Não passou muito tempo — uma meia hora, quarenta minutos, talvez —, o Duque me chama, agarrado à sua arma, o olho direito pregado na luneta:
— Capitão, capitão. Acho que estou com um bandido no alvo.
— Mas você está mirando para fora da favela.
— Pois é, capitão. Acho que identifiquei um vagabundo lá no Bugre.
— No Bugre, rapaz. Mas dá pra você ver que é um bandido. Como é que você sabe?
— Dá pra saber, sim, capitão. Dá uma espiada o senhor mesmo com seu binóculo. O cara está com um fuzil. Quer dizer, tudo indica que é um fuzil.
— Tudo indica ou é um fuzil?
— Mais ou menos.
— Como mais ou menos? É mais ou menos um fuzil?
— É um fuzil. Um fuzil. Dá pra ver o cano longo, direitinho. É fuzil no duro. Olha, só, capitão. Espia.
Apontei meu binóculo, me abaixei para ficar ao lado do fuzil, busquei a posição mais adequada, grudei os olhos nas lentes, mas não vi porra nenhuma. Nem fuzil, nem pessoa alguma, mal vislumbrava uma bruma leitosa, o mormaço tardio numa nuvem de areia.
— Não estou vendo porra nenhuma, Duque.
— O senhor já vai ver, capitão. Ajeita direitinho. Dá uma olhada naquela pedra. Tá vendo aquela pedra pontiaguda, grande, lá no alto? Agora, desce reto, passa pelas casas, a bicicleta, desce mais, morro abaixo, o verde, a terra e a alça de terra... Pronto. Achou? O senhor tá vendo?
Ele se esticou ao meu lado, meteu a cara, mexeu nos anéis que regulavam o visor e exclamou:
— Pronto. Agora, olha ele lá. Olha lá.
Olhei, fixei a vista com o máximo de intensidade. Via uma forma tênue longilínea que parecia se mover, mas eu nem tinha certeza se o vulto era uma pessoa, se efetivamente se movimentava, muito menos se portava uma arma.
— Você está doido, Duque. Está vendo coisas.
— Não estou não, capitão. É um cara, sim, e está armado.
— Deixa o cara, esquece.
— Pô, capitão, ele está bonitinho, bem na alça de mira. Deixa eu dar um teco. Vai ser um só.
— Que é isso, Duque? Esquece essa bobagem.
— Mas, capitão, o sujeito se mexe feito bandido, eu conheço essa gente. É um vagabundo, sim senhor.
— Esquece, porra.
— Puxa, capitão, ele está bem paradinho, quietinho, parece um passarinho pedindo um teco. É só um. Deixa eu dar uma pancadinha só.
— Duque, você já imaginou a merda que daria se você estivesse enganado? E se não houver fuzil nenhum? Se for uma bengala? Se for um pedaço de pau? Se for qualquer outra merda, cacete? Além do mais, dessa distância dificilmente você acertaria o seu passarinho. Porra, muda o disco. Relaxa. Deixa essa merda pra lá. Estica as pernas. Toma um gole d'água. Vem ajudar a gente a finalizar o plano.
— Puxa, capitão. Seria um tirinho só. Essa arma é a oitava maravilha do mundo. Não tenho como errar. Olha o filho da puta ali, logo ali, tranqüilo, paradinho. Capitão, ele está pedindo.
— Esquece, porra. Não enche o saco, Duque.
Pou!
Foi um estampido só.
Duque parecia tomado por uma compulsão. Parecia um drogado.
— Acertei o filho da puta, capitão. Acertei. Está no chão. O cara está no chão.
— Puta que o pariu, Duque. Quem foi que te deu a ordem, porra? Não ouviu o que eu disse?
— Pô, capitão, é que ele estava pedindo...
— Corre lá, caralho. Eu vou com você.
Chamei alguns soldados para nos acompanharem.
— Vamos ver o que você aprontou.
Descemos a favela de Nazareth, numa carreira desabalada. Atravessamos algumas ruas. Chegamos à base da favela do Bugre, que parecia pacificada, seja porque estávamos ali por perto, seja porque tínhamos leito, uns dias antes, um trabalho do tipo antibiótico tarja-preta: de amplo espectro. Não deixáramos pedra sobre pedra. Se bem que, se o Duque estava certo, alguma semente talvez tivesse resistido e já começasse a se desenvolver novamente — mas isso era sempre assim. Subimos com cautela, profissionalmente, mas em alta velocidade. Eu já havia suado o equivalente ao índice pluviométrico daquele mês inteirinho. Finalmente, chegamos à área onde o Duque supostamente atingira seu alvo. Um bolo de gente cercava um sujeito estirado. Todo mundo correu, quando nos viu. O cara estava vivo, chorava e apertava a região pélvica. Alguns metros adiante, os bagos boiavam numa poça de sangue, espalhados, estilhaçados. Ao lado do pobre coitado, o fuzil que só o Duque tinha visto. Visto ou intuído, sei lá. A moral da história parecia ser essa mesmo: para o sniper, mais importante que a pontaria é a intuição. Pensei que o Duque fosse tirar uma onda e gozar da minha cara — entre nós o companheirismo era muito mais profundo e antigo do que a relação hierárquica. Mas ele estava inconformado:
— Porra, capitão, que merda. Ainda não me acostumei com essa arma. Que merda. Sacanagem com o cara. Olha só que cagada. Não era isso que eu queria fazer. Se eu acerto, o sujeito não ia nem sentir.
3 comentários:
Pow muito louca essa historia....muito boa
legauuuuuu!!!!!!!!!!!!!!!!!!
fiz uma referencia do seu blog,para essa pagina ok?
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