sexta-feira, 21 de março de 2008

Nefelibata de carteirinha


Para que toda essa arte abstrata aí se existem nuvens? Mesmo na mais pavorosa cidade há nuvens. Mesmo a massa cinza de uma nuvem amorfa ainda será dezenas de vezes superior a um Rothko, a um Pollock, a um Mondrian. A sua janela já é uma moldura. Aliás, minto. A moldura é que foi criada para assemelhar-se a uma janela. Veja as nuvens douradas do crepúsculo. As brancas-carneirinhas do meio-dia. As plúmbeas de chuva. Aquela parece um dromedário e a outra lembra o ex-ministro Reis Velloso. As descabeladas Cirrus radiatus; as translúcidas Stratus undulatus; as elegantérrimas Altocumulus; e, claro, as poderosas e imponentes Cumulonimbus, minhas preferidas. A natureza tem coisas bonitas pra caramba. As nuvens estão dando espetáculo permanentemente. Sem cobrar ingresso. É arte subsidiada vinda diretamente da palheta divina. Para que ficar sujando telas com arte abstrata, então? Só para movimentar a indústria de vinhos brancos horrorosos das vernisages? Nah! Não vale a pena. O cavalheiro aí do fundo levantará a mão e dirá que há pessoas que não têm janelas, que têm muros de tijolos altíssimos cercando suas casas; ou que existem pessoas vivendo em containers lacrados amarradas em cobertores de lã espessa. Mas será que essas pessoas, meu gentil cavalheiro, não têm sequer dinheiro para comprar um bom microscópio e colocar um inseto, qualquer inseto, sob as lentes em suas horas de lazer? Se o senhor quer arte abstrata de altíssima categoria repare nos detalhes dos omatídeos de um pirilampo comum. Ou, se houver pelo menos uma fresta de janela em sua casa, repare nas nuvens que passam agora sobre seu bairro. Deixem as paredes em paz, eu digo, elas são suas amigas, elas não fizeram nada contra vocês, não as queiram mal, não as torturem. Abdiquem da arte abstrata e vão olhar pela janela. As paredes agradecem.

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