quinta-feira, 9 de novembro de 2006

Documentário versus reportagem


(Historiador do cotidiano)
Cinema


Documentário: “que tem valor ou caráter de documento; filme informativo e/ou didático feito sobre pessoa(s) (ger. de conhecimento público), animais, acontecimentos (históricos, políticos, culturais etc.) ou ainda sobre objetos, emoções, pensamentos, culturas diversas etc.”.[1]

Reportagem: “atividade jornalística que basicamente consiste em adquirir informações sobre determinado assunto ou acontecimento para transformá-las em noticiário; o resultado desse trabalho (escrito, filmado, televisionado), que é veiculado por órgãos da imprensa”.[2]

Aparentemente sutil, os gêneros de produção de conteúdo visual possuem uma característica essencial na diferenciação: a autoria.

Os primeiros registros visuais, documentários ou reportagens, podem ser encontrados produzidos por nossos antepassados - nas cavernas - de forma pictográfica, na qual os guerreiros informavam aos companheiros e às mulheres como fora a caçada, quais animais encontraram, quais armas utilizaram, quais bichos mataram e de quais fugiram. A narrativa não verbal está bem explícita em desenhos seqüenciados.

Pulando algumas etapas da nossa longa evolução, encontramos os irmãos Lumière a exibir fotografias em seqüência para mostrar ações do cotidiano[3]. Surgia o cinema mudo, uma evolução tecnológica para transmitir informações - e registrá-las - tais quais nossos ancestrais faziam.

O surgimento do cinema ficou caracterizado na primeira exibição pública do cinematógrafo dos irmãos Lumière, em 28 de dezembro de 1895 no salão do Grande Café de Paris, apesar de ter acontecido uma primeira sessão reservada (première, ou estréia) em 28 de setembro do mesmo ano. A exibição pública contou, entre outros, com o artista Georges Méliès na platéia:
La première projection publique du Cinématographe
par les frères Lumière eu lieu le 28 septembre 1895
à La Ciotat Bouches-du-Rhône dans la première salle
de Cinéma au monde L'Eden qui existe toujours, trois
mois avant celle projetée comme démonstration
inaugurale au Salon indien du Grand Café à Paris le
28 décembre 1895, la Sortie de l'usine Lumière à Lyon
film tourné par les deux frères. Georges Méliès, qui
y assistait en tant que simple spectateur y reçut sa toute
première inspiration. Bien que celles-ci ne sont plus
considérées comme les premières au monde, les
projections des pionniers Jean Le Roy le 22 février 1895
à Clayton dans le New Jersey et le français
Louis Aimée Augustin Le Prince 1888 étant antérieures,
mais ce cinéma avant la lettre et non commercial est rejeté
dans la catégorie, pré-cinéma.
[4]

Segundo Tom Gunning[5], o centenário do cinema mostra o “primeiro século de história capturada pelos filmes”, ou seja, século da documentação da realidade pelas fotografias em movimento. Com isto temos o início do pensamento do cinema como registro, documento, ao invés do surgimento para (e pela) arte, conforme empregado em larga escala atualmente.

A mudança significativa de emprego do cinema ocorreu com o ingresso do russo Serguei Einsenstein que utilizou - na década de 1920 - o cinema como arma de propaganda. Para isso, refinou o conceito de edição das imagens capturadas e mudança de planos. Para ele não bastava mais a câmera estar fixa em determinado local, mas a mudança de ângulos para mostrar o que nem sempre estava perceptível. No seu filme “O encouraçado Potemkin” (1925), apresentou a cena da escadaria - com tropas czaristas enfrentando civis - de forma dramática, mas na reconstituição de fato, o que demonstra o registro in loco dos acontecimentos (características essencial em documentários)[6].

É importante ressaltar que o registro in loco dos acontecimentos - pelo documentarista, isto é, sem contar imagens de arquivos - pode ser feito de duas maneiras[7]: o “contemporâneo”, no qual os registros utilizados são espaço-temporalmente próximos à produção do documentário (aspecto imprescindível no caso das reportagens); o “(re)construído”, no qual faz-se referência aos eventos passados mas não se utiliza de locações reais e sim de cenários virtuais e maquetes, e; “referencial evolutivo”, onde há a captação de imagens nos locais históricos normalmente entrevistando personagens dos ocorridos em tais lugares.

Mas antes de caracterizarmos completamente os documentários, vamos conhecer algumas características do jornalismo.


Jornalismo e suas características

“Jornalismo é a atividade profissional que consiste em lidar com notícias, dados factuais e divulgação de informações. Também define-se o Jornalismo como a prática de coletar, redigir, editar e publicar informações sobre eventos atuais. Jornalismo é uma atividade de Comunicação”.[8]

Apenas esta definição não se mostra suficiente para a enormidade de atribuições e responsabilidades dos jornalistas. O código de ética do jornalismo brasileiro é mais claro, em seu artigo 3º explica que “A informação divulgada pelos meios de comunicação pública se pautará pela real ocorrência dos fatos (...)”, e o artigo 14º esclarece que o jornalista deve “ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por terceiros e não suficientemente demonstradas ou verificadas”[9].

Portanto fica claro que a responsabilidade do jornalista é registrar um acontecimento, com proximidade espaço-temporal, ouvir os dois (ou mais) lados envolvidos no evento, e divulgar as informações. O jornalista não poderá, no entanto, emitir juízo de valor, nem tendenciar os dados obtidos, como mostra o primeiríssimo artigo do código de ética: “O acesso à informação pública é um direito (...) que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse”, principalmente os interesses pessoais - essencialmente os ideológicos - do jornalista.

Não transparece assim caráter autoral, afinal o jornalista apenas divulga o que apura, apesar da tendência do conteúdo visual estar passível a abusos por suas “características subliminares de codificação e decodificação sociais imagens”[10].

A reportagem, então, seria uma forma de investigação aprofundada sobre um determinado tema para expor comportamentos e atitudes não éticas, imorais ou ilegais, mas que se mantém fiel à realidade sempre a ouvir todos os lados envolvidos no ocorrido.
Investigative journalism, in which journalists
investigate and expose unethical, immoral and
illegal behavior by individuals, businesses and
government agencies, can be complicated,
time-consuming and expensive - requiring teams
of journalists, months of research, interviews
(sometimes repeated interviews) with
numerous people, long-distance travel,
computers to analyze public-record databases,
or use of the company's legal staff to secure
documents under freedom of information laws
”.[11]
Dito isto, e face ao vídeo-reportagem e à reportagem escrita serem irmãos gêmeos, podemos citar algumas características inerentes a ambos:

- Ausência de opinião do jornalista: apenas é apresentado o que foi registrado. Dados não obtidos através de entrevistas são fornecidos à audiência em imagens com a presença do repórter (“passagem”) ou apenas a voz (“off”);
- Apresentação de todos os lados envolvidos no fato: não importa quantos e quais os lados, sempre devem todos serem ouvidos para garantir isenção jornalística;
- Uso de personagens reais: não se pode utilizar-se do recurso de emprego de atores ficcionais no lugares de atores sociais envolvidos nos fatos pois isso descaracterizaria o conceito de cada fonte ser responsável pelas suas informações;
- Processo de edição não está sob controle do jornalista que produziu a reportagem: com isto, perde-se quase completamente a oportunidade do repórter moldar a reportagem às suas ideologias através da edição de imagens, como preconizado por Einseinstein.

Afinal, a vídeo-reportagem nada mais é que um filme, de curta duração, realizada com informações obtidas jornalisticamente.
Un reportage est un film de courte durée
(de moins d'une minute à quelques minutes),
dont le contenu manifeste est essentiellement
d'ordre informatif. Il est réalisé par un
reporter
”.[12]

E o documentário?

O documentário é um gênero cinematográfico que se caracteriza pelo compromisso com a exploração da realidade. Mas dessa afirmativa não se deve deduzir que ele represente a realidade tal como ela é. O documentário, assim como a ficção, é uma representação parcial e subjetiva da realidade. A palavra documentário deriva do latin “documentum” que significa “título ou diploma que serve de prova, declaração escrita para servir de prova”[13].

A representação parcial e subjetiva da realidade está exacerbadamente à mostra nos documentários, pois “a parcialidade é bem vinda no documentário”.[14] Esse olhar que o documentarista aplica à sua produção é que torna tal filme autoral: ele carrega os conceitos e opiniões do seu autor, devidamente salientados na seqüência narrativa da exibição de documentos, depoimentos e reconstituições.

Para voltarmos ao surgimento do conceito de vídeo-documentário, encontrarmos que os primeiros eram nada mais que pequenos registros como trens adentrando estações, barcos ancorando ou pessoas saindo de fábricas (como os produzidos pelos irmãos Lumière).
La pratique révèle que la limite entre
objectivité et point de vue du cinéaste
est particulièrement ténue: un documentaire
répond toujours à une démarche de son
auteur, et propose donc une vision particulière.
Cette vision résulte principalement de choix,
que ce soit au niveau du sujet traité,
des moyens, de l'approche ou, surtout,
du montage
”.[15]
Ou seja, enquanto no jornalismo há a eterna busca pela (teórica) objetividade na transmissão das informações, o documentário manifesta essencialmente a subjetividade, encontrada através da maneira particular com a qual a história é contada pelo diretor / autor[16].

“O vídeo-documentário é um produto audiovisual que aborda um tema, lugar, animal, questão social ou cultural, pessoa - famosa ou anônima - uma doença, uma descoberta”[17], ou seja, uma verdadeira infinidade de temas que potencializa as aplicações cinematográficas na transmissão de informações e reforça os aspectos sobre o registro da realidade, como afirma Penafria pois “o filme documentário é aquele que, pelo registro do que é e acontece, constitui uma fonte de informação para o historiador e para todos os que pretendem saber como foi e como aconteceu”[18].

As principais características[19] dos documentários residem em:

· Discurso sobre o real: O documentário versa sobre temas e acontecimentos reais, mas não necessariamente com proximidade espaço-temporal da audiência;
· Registro in loco: A captura de imagens e informações são feitas nos locais históricos dos acontecimentos ou, na ausência deles, em maquetes ou ambientes virtuais que simulem com precisão histórica;
· Caráter autoral: Se o autor não expor sua opinião na narração da história, na seqüência narrativa das imagens e depoimentos e/ou na edição, não será um documentário e sim apenas uma reportagem;
· Suporte: O documentário não costuma ser produzido apenas para um único veículo, mas vários;
· Temática: Como a produção não precisa de proximidade espaço-temporal (como no caso da reportagem) os temas a serem abordados versam por todos os campos do conhecimento;
· Presença do locutor: Característica não necessária. Quando presente o locutor pode aparecer em on (quando ele efetivamente é visto, como os documentários do History Channel) ou em off (quando aparecem imagens e o locutor apenas narra, como normalmente observamos nos documentários do Discovery Channel). De forma alternativa, a presença do locutor pode ser suprimida quando os depoimentos possuem ganchos nos quais os entrevistados “conversam” (através da edição correta das imagens) entre si, e essa seqüência de depoimentos consegue servir como linha narrativa (como observados no documentário brasileiro “Senta Pua” ou no argentino “Ilhas Malvinas”);
· Uso de depoimentos: Recurso usado em larga escala pois, apesar do autor contar sua história, ele o faz pela seqüência narrativa mas depende das testemunhas históricas enquanto atores sociais do ocorrido. Na ausência de testemunhas, empregam-se depoimentos de pesquisadores e reconstituições;
· Uso de reconstituições: Na ausência de testemunhas vivas dos acontecimentos, ou em eventos históricos como grandes batalhas da Antigüidade, observa-se o emprego das reconstituições com atores teatrais e uso de realidade virtual computacional;
· Uso de personagens ficcionais: Nem todos os registros históricos versam sobre possíveis conversas ou sentimentos individuais de populações e indivíduos face a acontecimentos espaço-temporais contemporâneos a eles. Assim, emprega-se o uso de atores teatrais para retratar realidades históricas não atuais;
· Uso de documentos históricos: Desde a apresentação de documentos em papel até mesmo ao uso de imagens de arquivos pessoais ou públicos, o emprego de documentos históricos remonta a necessidade de apresentar informações de forma mais consistente do que o uso de depoimentos.


Considerações finais

Conforme estudado, as diferenciações entre vídeo-documentário e vídeo-reportagem repousam, essencialmente, no caráter autoral, pois os jornalistas que produzem reportagens devem ser fiéis aos fatos ocorridos, sem prolongá-los no universo espaço-temporal que separa o fato da audiência.

Mas na contramão dessa proximidade e sem necessidade da imparcialidade, os documentários mostram-se autorais - já que seus autores / diretores - expressam de forma sutil, porém clara, quais seus pontos de vistas sobre os temas abordados. Essa parcialidade é, não só esperada, como desejada.

A fuga das regras de isenção e imparcialidade jornalística possibilitam a (re)construção de realidades com mais liberdade, nas quais o autor percorre o tema com maior profundidade e permite a audiência conhecer melhor - em vídeos normalmente mais extensos que reportagens - a realidade tal qual ela aconteceu, ou queremos que tal registro imagético seja o que nós pensamos que aconteceu.

Assim fica provada a necessidade intrínseca da humanidade em ter contato com ambos os gêneros de produção, pois são os dois imprescindíveis para o incremento da cultura individual, bem como o registro na memória coletiva de eventos que - às vezes - não nos lembramos, não nos foi contado, ou nos esforçamos para esquecer.
Referências

[1] HOUAISS, dicionário. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/
[2] HOUAISS, dicionário. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/
[3] BITTENCOURT, Laurence B. Leite. NOTAS DE SALA DE AULA - Disciplina Cinema, vídeo e jornalismo. 2006.
[4] Enciclopédia Wikipédia. Disponível em: http://fr.wikipedia.org/wiki/Auguste_et_Louis_Lumière
[5] Artigo “Cinema e história: fotografias animadas”, encontrado em: XAVIER, Ismail. O CINEMA NO SÉCULO. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[6] Artigo: "SERGUEI EINSEINSTEIN - O pioneiro da montagem de cenas em cinematografia". Disponível em: http://historiadordocotidiano.blogspot.com/
[7] MELO, Cristina Teixeira Vieira de. O DOCUMENTÁRIO COMO GÊNERO AUDIOVISUAL. Salvador: Intercom, 2002.
[8] Enciclopédia Wikipédia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jornalismo
[9] FENAJ, Federação Nacional dos Jornalistas. CÓDIGO DE ÉTICA DO JORNALISMO BRASILEIRO. 1987. Disponível em: http://www.fenaj.org.br/Leis/Codigo_de_Etica.htm
[10] SQUIRRA, Sebastião Carlos de M. APRENDER TELEJORNALISMO: Produção e técnica. São Paulo: Brasiliense, 2004. Página 135.
[11] Enciclopédia Wikipédia. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Journalism
[12] Enciclopédia Wikipédia. Disponível em: http://fr.wikipedia.org/wiki/Reportage
[13] CUNHA, Antônio Geraldo. DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Citado por: BITTENCOURT, Laurence B. Leite. NOTAS DE SALA DE AULA - Disciplina Cinema, vídeo e jornalismo. 2006.
[14] MELO, Cristina Teixeira Vieira de. O DOCUMENTÁRIO COMO GÊNERO AUDIOVISUAL. Salvador: Intercom, 2002.
[15] Enciclopédia Wikipédia. Disponível em: http://fr.wikipedia.org/wiki/Documentaire
[16] MELO, Cristina Teixeira Vieira de. O DOCUMENTÁRIO COMO GÊNERO AUDIOVISUAL. Salvador: Intercom, 2002.
[17] BITTENCOURT, Laurence B. Leite. NOTAS DE SALA DE AULA - Disciplina Cinema, vídeo e jornalismo. 2006.
[18] PENAFRIA, Manuela. O FILME DOCUMENTÁRIO - História, identidade, tecnologia. Lisboa: Cosmos, 1999.
[19] Lista de características por: MELO, Cristina Teixeira Vieira de. O DOCUMENTÁRIO COMO GÊNERO AUDIOVISUAL. Salvador: Intercom, 2002.

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