À luz da Constituição, não houve golpe em Honduras
Golpe semântico
À luz da Constituição, não houve golpe em Honduras
POR LIONEL ZACLIS (*
In: www.conjur.com.br
Embora a mídia venha se referindo à substituição do presidente da
República de Honduras como um golpe, parece que ninguém, até
agora, fez um estudo mais aprofundado dos fatos ali ocorridos à luz
da Constituição, e sob a ótica das medidas judiciais levadas a efeito.
Pelo menos, ainda não deparei com uma análise mais aprofundada no
que tange à aderência daqueles fatos às regras de um Estado de
Direito. Trata-se de algo que não tem provocado interesse, seja por
parte da mídia, seja por parte dos juristas.
Analisada a questão do ponto de vista jurídico, distante dos
interesses político-ideológicos, a conclusão a que se chega é a de que
esse pequeno país da América Central tem sido punido por cumprir as
normas constitucionais ali imperantes. Se boas ou ruins, é tema que
não vem à baila neste momento.
É alarmante o poder da desinformação. Mercê de inversão semântica,
característica da novilíngua que se espalha de modo avassalante,
está-se conseguindo alterar o significado da expressão “golpe de
Estado”, de tal modo a atribuir-lhe sentido oposto ao que lhe é
próprio. Sempre se entendeu “golpe de Estado” como tomada do
poder governamental pela força e sem a participação do povo, ou o
ato pelo qual um governo tenta manter-se no poder, pela força, além
do tempo previsto.
Agora, contudo, passou a atribuir-se tal denominação ao processo de
troca do governante de acordo com a Constituição vigente no país, e
realizado com o propósito de preservá-la. Se não há má-fé nessa
inversão semântica, tal atitude só pode resultar de ignorância dos
fatos efetivamente ocorridos.
De acordo com a Constituição de Honduras, o mandato presidencial
tem o prazo máximo de quatro anos (artigo 237), vedada
expressamente a reeleição. Aquele que violar essa cláusula, ou
propuser-lhe a reforma, perderá o cargo imediatamente, tornando-se
inabilitado por dez anos para o exercício de toda função pública. A
Constituição é expressa nesse sentido: “Articulo 239. El ciudadano
que haya desempeñado la titularidad del Poder Ejecutivo no podrá ser
Presidente o Designado. El que quebrante esta disposición o
proponga su reforma, asi como aquellos que lo apoyen directa o
indirectamente, cesarán de inmediato em el desempeño de sus
respectivos cargos, y quedarán inhabilitados por diez años para el
ejercicio de toda función pública”.
Assim, em razão da vacância do cargo de presidente da República,
assume seu lugar o presidente do Congresso Nacional, e, na falta
deste, o presidente da Corte Suprema de Justiça, sempre pelo tempo
que faltar para concluir o período constitucional (art. 242).
É tão grande a preocupação dos hondurenhos em impedir o retorno
do caudilhismo que o artigo 42, 5, dispõe a respeito da perda da
cidadania por parte daqueles que incitarem, promoverem ou
apoiarem o continuísmo ou a reeleição do presidente da República,
após prévia sentença condenatória proferida pelo tribunal
competente.
Por seu turno, o Poder Legislativo é exercido por um Congresso de
Deputados, eleitos pelo voto direto, cabendo-lhe, entre outras
atribuições, a declaração da existência de motivo para instauração de
processo contra o presidente da República e outras autoridades
(artigo 205, 15), assim como a aprovação ou reprovação da conduta
administrativa do Poder Executivo e de outros órgãos e instituições
descentralizadas (artigo 205, 20).
É importante salientar que as reformas da Constituição só podem ser
realizadas pelo Congresso de Deputados, com o voto favorável de 2/3
da totalidade de seus membros, devendo as novas disposições ser
ratificadas pela subsequente legislatura ordinária, por igual quorum,
para que possam entrar em vigor (art. 373).
Finalmente, à Suprema Corte cabe conhecer dos delitos oficiais e
comuns dos altos funcionários da República, quando o Congresso
Nacional houver declarado a existência de motivo para a instauração
do processo (artigo 319, 2), assim como declarar a existência ou não
de motivo para a instauração de processo contra os funcionários e
empregados que a lei determinar (artigo 319, 5), e, ainda, requisitar
o auxílio da Força Pública para o cumprimento das suas decisões.
O Chefe das Forças Armadas é eleito pelo Congresso Nacional,
conforme proposta do Conselho Superior das Forças Armadas, com
mandato de cinco anos, e somente pode ser removido do cargo pelo
voto de 2/3 da totalidade dos Deputados, quando haja dado motivo à
instauração de processo, e nos demais casos previstos na Lei
Orgânica das Forças Armadas (art. 279).
Por força do disposto no artigo 374 da Constituição, em nenhuma
hipótese poderão reformar-se as disposições que dispõem, entre
outros, sobre o período presidencial e a proibição para exercer
novamente a Presidência da República, imposta a quem, a qualquer
título, a tenha exercido anteriormente. E, à evidência, em nenhuma
hipótese poderão ser reformadas essas cláusulas pétreas.
Muito bem. Em 23 de março de 2009, o presidente Zelaya baixou o
Decreto Executivo PCM-05-2009, estabelecendo a realização de uma
consulta popular sobre a convocação de uma assembléia nacional
constituinte para deliberar a respeito de uma nova carta política.
Em face disso, em 8 de maio de 2009, o Ministério Público promoveu,
perante o “Juzgado de Letras Del Contencioso Administrativo” de
Tegucigalpa (Proc. 151/09), uma ação judicial contra o Estado de
Honduras, representado pela Procuradoria-Geral da República,
pleiteando a declaração de nulidade do decreto em foco. E, como
tutela antecipatória, requereu-lhe a suspensão dos efeitos, sob o
fundamento de que produziria danos e prejuízos ao sistema
democrático do país, de impossível ou difícil reparação, e em
flagrante infração às normais constitucionais e às demais leis da
República, isso para não falar dos prejuízos econômicos à sociedade e
ao Estado, tendo em vista a dimensão nacional da consulta.
A tutela antecipatória foi deferida pelo juiz competente em 27 de
maio de 2009, com fundamento no art. 121 da Lei de Jurisdição do
Contencioso Administrativo (Lei 189/87), que afirma: “Proceder-se-á
à suspensão quando a execução puder ocasionar danos ou prejuízos
de reparação impossível ou difícil”, complementada, com efeitos
declaratórios, em 29 de junho seguinte.
Em 3 de junho, o Juizado proibiu o presidente Zelaya de continuar a
consulta. Contra essa decisão, impetrou ele um Recurso de Amparo
— similar ao nosso Mandado de Segurança — perante a Corte de
Apelações do Contencioso Administrativo, o qual foi rejeitado em 16
de junho, sob os fundamentos de não ter sido interposto o recurso
cabível dentro do prazo legal, e de faltar legitimação ativa ao
impetrante, porquanto, no Contencioso Administrativo, compõe a
lide, no pólo passivo, o Estado de Honduras, representado pela
Procuradoria-Geral da República, e não a pessoa física do presidente.
Assim, o Juizado do Contencioso Administrativo expediu, no dia 18 de
junho, uma segunda ordem contra o presidente, tendo uma terceira
sido expedida nesse mesmo dia. Em outras palavras, encontrava-se
ele plenamente advertido de sua conduta tida como ilegal, sendo
certo que já havia um processo instaurado contra si por flagrante
desacato à Constituição e às reiteradas ordens judiciais.
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Em virtude dessa desobediência, o promotor-geral da República
ofereceu, perante a Suprema Corte, denúncia criminal contra o
presidente Zelaya, sustentando configurar sua conduta crimes de
atentado contra a forma de governo, de traição à pátria, de abuso de
autoridade e de usurpação de funções, em prejuízo da administração
pública e do Estado. A Suprema Corte aceitou a denúncia em 26 de
junho, com fundamento no art. 313 da Constituição e designou um
magistrado para instruir o processo. Em consequência disso, decretou
a prisão preventiva do denunciado, com o que foi expedido mandado
de captura, cujo cumprimento ficou a cargo do chefe do Estado Maior
das Forças Armadas.
No mesmo dia, o Juizado de Letras do Contencioso Administrativo
deu ordem às Forças Armadas para suspender a consulta pretendida
pelo presidente Zelaya e tomar posse de todo o material que nela
seria utilizado. O presidente Zelaya, então, ordenou ao chefe do
Estado Maior das Forças Armadas que distribuísse o material eleitoral
de qualquer modo, porém o último, invocando a ordem judicial, se
negou a fazê-lo, ao que foi destituído, tendo, em seguida, impetrado
junto à Suprema Corte um recurso de amparo para ser reconduzido
ao cargo.
Em 25 de junho, a Suprema Corte julgou os Recursos de Amparo
881-09 e 883-09, que haviam sido impetrados, respectivamente, pelo
chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas e pelo promotor
especial para a Defesa da Constituição, voltando-se ambos contra o
ato de destituição do chefe do Estado Maior. A Suprema Corte
acolheu-os e, em consequência, cassou o ato do presidente Zelaya,
sob o fundamento de que a remoção do chefe do Estdo Maior das
Forças Armadas constitui ato privativo do Congresso Nacional, nos
termos do artigo 279 da Constituição.
Finalmente, em 29 de junho, a Suprema Corte, por unanimidade,
decidiu remeter o processo contra o presidente Zelaya ao Juzgado de
Letras Penal Unificado porque ele “já não ostentava o cargo de alto
funcionário do Estado”, em face de sua substituição operada pelo
Poder Legislativo, de acordo com a Constituição.
Assim sendo, para que se possa aquilatar com isenção o que vem
sucedendo em Honduras, do ponto de vista eminentemente jurídico,
ou seja, para se concluir se realmente houve um “golpe” ou, ao
contrário, legítima deposição, mediante observância das regras
constitucionais, torna-se imprescindível examinar, à luz do Direito,
os
fatos acima narrados.
É o que procuraremos fazer, de modo sintético, fixando, de início,
determinados fatos incontestáveis:
- a Constituição prevê que a mera tentativa, por parte de todo e
qualquer servidor público, de alterar o sistema de eleição do
presidente da República implica imediata perda do cargo (artigo 239
e alínea);
- são intangíveis as disposições constitucionais concernentes, inter
alia, ao período presidencial e à proibição de que alguém seja
presidente da República por mais de um mandato (art. 374);
- o presidente da República baixou um decreto propondo a realização
de uma consulta sobre a convocação de uma assembleia constituinte,
sendo público e notório o propósito de alterar a cláusula pétrea que
proíbe um novo mandato;
- o presidente da República não obedeceu a decisão do juiz
competente, confirmada em segunda instância, que suspendeu a
execução do decreto;
- o presidente da República destituiu o chefe do Estado Maior das
Forças Armas, quando, por força do artigo 279, apenas o Congresso
de Deputados pode fazê-lo;
- a Suprema Corte acolheu a denúncia formulada pelo Ministério
Público, decretando a prisão preventiva do presidente da República;
- com a vacância do cargo, este foi preenchido pelo presidente do
Congresso Nacional, de acordo com o disposto no artigo 242 da
Constituição;
- houve respeito ao princípio do devido processo legal, pelo menos
quanto ao seu conteúdo mínimo (contraditório, juiz natural,
motivação das decisões, prova lícita, etc).
Ora, se todas as afirmações acima feitas são verdadeiras — e nada
até agora indica o contrário —, tudo aponta no sentido de terem sido
obedecidas as regras constitucionais e legais para a deposição do
chefe do Poder Executivo. O artigo 239 dispõe que a perda do cargo é
imediata, isto é, ela deve ocorrer por meio de tutela de urgência, sem
maiores delongas, mediante aplicação direta da norma constitucional,
que, auto-aplicável, dispensa lei para adquirir eficácia.
É certo que as Forças Armadas, ao executarem o mandado de prisão,
extrapolaram os limites aos quais se deviam circunscrever, ao
expulsarem do país o presidente Zelaya. No entanto, embora esse
excesso configure uma nítida e inadmissível ilegalidade, não tem, à
evidência, o condão de contaminar o processo constitucional da
substituição presidencial, de modo a convertê-lo num “golpe de
Estado”.
Por conseguinte, abstraído o lamentável e condenável episódio da
expulsão, cabe a pergunta: onde estaria o tão decantado “golpe de
Estado”? Só na cabeça de prestidigitadores sempre desejosos de
transformar o quadrado em redondo, e o preto em branco, e que, por
meio da franca adoção de uma “novilíngua jurídica”, pretendem, à
viva força, incutir no espírito alheio que a obediência à Constituição
e
às leis que governam os Estados de Direito configura “golpe de
Estado”. Isso porque, embora não o declarem abertamente, têm para
si que Estado de Direito não passa de mera “ilusão burguesa”.
Mas, se isso pode adquirir foros de verdade, cabe, em contrapartida,
por exigência de um mínimo de lógica, indagar sobre como deveriam
ser classificados os que, eleitos sob a égide de uma Constituição que
juraram defender, passam a usar o cargo como gazua para arrombála,
com o propósito de perpetuar-se no poder, metamorfoseando-se
em caudilhos e caudilhotes com vestes de “democratas”. Qual seria o
título a eles mais adequado ? O de “Defensores do Povo”, cujos
interesses só eles, na sua onisciência, conseguem detectar, ou o de
“Defensores da Democracia”, de acordo com sua particular visão
desse conceito, ou, ainda, de “Duces” ou “Fuhrers”?
Antes de responder a essa pergunta, é mister, no entanto, não
esquecer de que a eleição pelo povo é apenas um vestibular, no qual
não se encerram outras tantas exigências dessa “escola” que se
chama Democracia. O eleito pelo povo há que respeitar a
Constituição e as leis do país, e não destruí-las aproveitando-se do
poder de que se investiu mercê da eleição. Eleição pelo povo não
significa, por si só, alvará pleno para que o eleito possa fazer tudo
que bem entender, inclusive destruir a ordem constitucional e, em
consequência, a democracia, sob cuja égide se elegeu.
Outra expressão também trabalhada pela novilíngua e que entrou na
moda consiste em chamar o atual governo hondurenho de “governo
de facto”, com o nítido propósito de contrapô-lo ao “governo de jure”.
Mas, se a investidura do governo substituto seguiu os trâmites
previstos na Constituição, por que “governo de facto”? Se não for
má-fé, ou ignorância dos fatos, talvez isso deva ser debitado à
retirada do ensino do latim em nossas escolas.
Diz-se ainda ter havido um golpe militar “com apoio do Ministério
Público, da Suprema Corte e do Congresso Nacional”. Ora, o que
exsurge do relato dos fatos é exatamente o contrário, ou seja, a
Suprema Corte é quem decidiu pelo afastamento do presidente,
fazendo-o a requerimento do Ministério Público, com a aprovação do
Congresso, tendo a força militar sido requisitada pelo Poder
Judiciário, nos termos do artigo 313 da Constituição, para o fim de
fazer cumprir a ordem judicial.
Se a deposição de um presidente é decretada pela Suprema Corte de
um país soberano, em que se baseiam outros países para arrogar-se
o direito de, certamente sem ao menos terem examinado os fatos
com a necessária atenção, desrespeitar o Poder Judiciário e a própria
soberania do país no qual ocorreu a deposição, qualificando de
“golpe” os atos praticados conforme a Constituição? É interessante
notar como certas figuras, de tão acostumadas a desrespeitar o seu
próprio Estado de Direito sem que nada lhes aconteça, não
conseguem se dar conta de que, em outros países, ainda que
insignificantes em termos territoriais, possa haver cidadãos menos
frouxos, com coragem e vontade política suficiente para fazer vingar
as instituições e as leis ali imperantes.
Por outro lado, o fato de em Honduras a deposição do presidente não
ser feita por meio de impeachment, tal como no Brasil ou nos EUA,
em nada altera a questão, porquanto a questão relevante consiste
em verificar se o processo constitucionalmente previsto para tal fim
em cada país foi respeitado, até porque cabe a cada país escolher,
para o fim de que se trata, a sistemática e o conjunto de normas que
melhor se adapte às suas características político-jurídicas.
Precisamos pensar com nossos próprios neurônios e procurarmos a
verdade, ainda que isso possa ser cansativo e consumir tempo. Do
contrário, os verdadeiros democratas, os que prezam o Estado de
Direito, constatarão que será muito tarde “quando a ficha lhes cair”.
______
(*) LIONEL ZACLIS é doutor e mestre em Direito pela USP e sócio de
Barretto
Ferreira Kujawski, Brancher e Gonçalves (BKBG) - Sociedade de
Advogados,
responsável pelo Departamento de Recuperação de Empresas, Insolvência
e
Direitos dos Credores. In: www.conjur.com.br
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